A escolha do Herói

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Com tantos livros de xadrez, o que estudar? Essa é um pergunta que todos os enxadristas fazem, do iniciante ao capivara experiente. Desconfio de que a esmagadora maioria das pessoas não sabe comprar os livros certos nem montar um bom plano de estudos. Claro que eu não poderia dar conselhos a respeito haja vista que não sou treinador nem tampouco jogador. Mas disponho do direito sagrado do palpite. Palpite baseado um tiquinho no que andei lendo por aí.
O GM inglês R. Keene já escreveu mais de cem livros de xadrez, a maioria porcaria e dois ou três realmente bons (sua biografia com partidas comentadas de Aaron Nimzowitsch é talvez o melhor que já escreveu, e até comentaristas enjoados como Watson, Donaldson e Silman cobriram de elogios). Pois é, com tanta experiência de escrever livros de xadrez, Keene deve ter algum bom conselho a dar:
"Há muitos anos tenho defendido um método efetivo para melhorar os resultados: adote um herói pessoal e estude seus jogos em profundidade. Com esse estudo, você passará a ter um método coerente e sistemático de jogo. Se seu herói escolhido for ainda vivo (e ativo), esse procedimento ainda poderá ser uma contínua fonte de inovações teóricas na abertura, um ingrediente vital nos torneios modernos, especialmente em torneios com jovens, nos quais um profundo estudo das linhas da moda é facilmente perceptível (correta ou incorretamente) e é chave infalível para o sucesso. (...) Se seu estilo tende para o posicional ou estratégico, então Mikhail Botvinnik ou Anatoly Karpov poderiam ser seu herói. Se seu estilo tende em direção à volatilidade tática e engenhosas idéias de ataque, então você pode ir atrás de Alexander Alekhine e de Bobby Fischer. (...) Um dos benefícios específicos do estudo das partidas de um mestre particular é a aquisição de um padrão de jogo para as manobras difíceis."
É importante lembrar que Keene escreveu esse troço em 1999, ou seja, numa época com Internet, ChessBase e já com centenas de livros bons de estratégia, finais, conceitos posicionais em aberturas, etc. Portanto, ele não está recomendando o estudo de um jogador específico por falta de bons livros no mercado, mas sim porque esse tipo de estudo é útil mesmo.
Examinando autores antigos e modernos, percebemos que os grandes mestres e os grandes instrutores repetem o conselho sem parar: escolha um jogador específico e estude todas as suas partidas.
Aaron Nimzowitsch contou que era apenas um jogadorzinho juvenil e promissor, com algum talento tático, quando resolveu mergulhar no estudo de partidas de alguns jogadores. Pegou o livro de Siegbert Tarrasch (!) sobre o torneio de Nuremberg 1906.
Esse torneio foi um grande triunfo de Frank Marshall, invicto (+9 =7), na frente de Duras, Schlechter, Mikhail Chigorin, Tarrasch, Znosko-Borovsky, Vidmar, Spielmann, Janowsky, etc, num total de 17 participantes.
Nimzowistch pegou o tal livro, levou a um encadernador e pediu que o cara botasse uma folha em branco entre cada uma de duas páginas impressas. As tais páginas em branco serviriam para anotações pessoais a respeito dos jogos. O próprio Nimzowitsch nos conta em um texto publicado originalmente em 1929:
"Então comecei a investigar vários jogos, especialmente os de Salwe, Duras e Forgács, e também os jogos de pretas de Chigorin. Anotava o resultado de minhas investigações nas folhas de papel em branco. Eu passava o tempo inteiro tentando adivinhar o que cada lado iria jogar, tanto de brancas quanto de pretas. Dessa maneira, cada jogo deveria durar seis horas, pelo menos. (...) Nas partidas de Salwe, eu estudei as características da posição com peão isolado em d4. (...) Percebi que não havia necessidade de pressa para ocupar o ponto e5 porque mais cedo ou mais tarde as pretas colocavam uma peça em d5 e então o ponto e5 continuava à disposição! (...) No caderno, eu não apenas colocava o conteúdo puramente técnico da manobra, mas também os aspectos psicológicos (‘Com freqüência, as casas são enfraquecidas automaticamente’, "Não tenha pressa!’ etc). (...) O resultado de minhas investigações foi que: (1) trabalhei sobre um detalhado plano de defesa (...) seguindo os passos de Chigorin; (2) Aprendi a jogar com paciência (...); (3) Além disso tudo, após um detalhado estudo de certos jogos, comecei a entender a estratégia das posições bloqueadas..."
Em seguida, Nimzowitsch lembra que esse método parecia apropriado para o começo do século XX, quando ainda havia poucos livros instrutivos. Mas ainda deveria ser adotado em 1929, quando já havia publicado "Meu Sistema", que ele sempre recomendou por considerá-lo o único do mundo realmente didático ? O próprio Nimzowitsch nos responde:
"O método que adotei em 1906 ainda hoje poderia ser recomendado sem hesitação. Vamos supor, por exemplo, que um jovem jogador de estilo combinatório se dedique a estudar com atenção, lance por lance, uma partida de José Raúl Capablanca. Surge um tipo de posição que excita o rapaz, inflama sua curiosidade. Ele quer saber qual teria sido o lance de Capablanca que deu continuidade ao ataque. Então, depois de tentar adivinhar, ele descobre que Capablanca jogou um lance que parece totalmente passivo. O jogador tático fica decepcionado e até irritado. Mas se ele realizar um exame profunda, perceberá a enorme força do movimento. Essa é a sensação causada por um lance puramente posicional em vez de um lance direto e esperado de ataque. Essa sensação (esse choque) tem um profundo significado pedagógico."
Podemos então resumir as sugestões:
  1. Escolha um herói do xadrez (ou alguns heróis) e estude muitas partidas.
  2. Tente adivinhar cada lance e depois compare seu palpite com o que realmente fez o mestre.
  3. Aos poucos, você irá aprender como proceder em posições típicas.
Esse método de estudo ensina todas as fases da partida: abertura, meio-jogo e final. E ainda tem um mérito complementar: pode ser bem mais divertido do que o estudo de fragmentos de jogo que costumam aparecer nos tratados de estratégia e de finais. Dá para adquirir uma visão mais holística (totalizante) do jogo.
É impressionante a lista de GMs que defendem esse tipo de estudo. Colhi alguns depoimentos de gente de alto nível como Karpov, Mikhail Tal, Seirawan, P. Benko, Browne, Csom, Federowicz, L. Schmid, Robatsch, G. Sigurjonsson, Alexander Kotov, Tigran Petrosian, todos grandes mestres internacionais:
"Existem poucos livros bons. Eu comecei com as partidas anotadas de Alekhine e de Nimzowitsch. " (Lothar Schmid, GM alemão)
"Jogadores mais fracos (Classe B e abaixo) devem estudar o livro de Botvínnik sobre suas próprias partidas e "Meu Sistema" de Nimzowitsch. Os jogos de Tahl são excelentes para treinar tática. (...) Muitos jogadores que tentam chegar a MI subestimam o valor desse tipo de livros. Eu particularmente estudei todos os livros de partidas dos heróis do passado. (...) Quando você estiver estudando essas partidas, vá devagar e leia com atenção cada nota, para ter certeza de que absorveu tudo. (...) Um dos primeiros livros que li foi "Cem partidas selecionadas de Botvínnik", um dos melhores livros jamais escritos. Mas o jogador que me influenciou definitivamente foi Bobby Fischer. Seu jogo dinâmico, agressivo, espontâneo e sempre visando ao ataque é o tipo de estilo que todos deveriam ter. O estudo detalhado de seus jogos melhorou muito minha habilidade." (Walter Browne, GM australiano, ex-campeão da Austrália e dos EUA)
"Procure estudar as partidas dos mais destacados mestres. Não há necessidade estudar milhares de partidas de todos os GMs. Procure se concentrar nos jogos de Karpov e Garry Kasparov. (...) Coleções de partidas são altamente recomendáveis. Especificamente, Botvínnik, Alekhine e Capablanca são excelentes para o estudo de jogadores em nível classe B." (Yasser Seirawan, o mais forte GM norte-americano nos anos 1980s)
"Suponha, por exemplo, que um garoto seja excelente tático mas não tenha idéia de onde colocar as peças. A solução é estudar os jogos de Tigran Petrosian ou Ulf Andersson, dois jogadores com estilo bastante posicional. Um rapaz de joga muito passivamente deve debruçar sobre as partidas de Kupreichik e Bellon, dois dos mais agressivos jogadores. (...) Pessoalmente, estudei coleções de partidas e procurei extrair de cada uma peculiaridade do seu estilo. Os jogos de Rubinstein (na obra de Hans Kmoch) são excelentes para isso. Inúmeros jogadores soviéticos ganharam pontos ELO estudando esse mestre." (Mikhail Tahl, GM soviético, ex-campeão do mundo)
"Aprendi a maior parte do que sei em uma biografia húngara de Capablanca que incluía mais de 300 partidas. Eu tinha 15 anos de idade quando estudei em profundidade seus jogos e logo dei um salto na minha força enxadrística. Com 17 anos, eu me tornei mestre, vencendo um torneio em Budapeste na frente de mais de dez mestres." (Paul Benko, GM húngaro naturalizado norte-americano, ex-participante do Torneio de Candidatos)
"Ao longo dos anos, quando os jornalistas e os fãs me perguntam pelos livros que me influenciaram como jogador de xadrez, eu usualmente repondo ‘Um grande livro’, e então começo a listar livros que a meu ver todos os novatos deveriam ler. Minha lista mudou através dos anos, mas existe um livro que jamais saiu dela: "Partidas selecionadas de Capablanca" de Vassily Panov. (...) Ganhei do meu pai quando fiz oito anos de idade. (...) Li e reli esse livro de capa a capa como uma novela ou uma história de aventura. (...) Eu estava estudando e aprendendo sem perceber." (Anatoly Karpov, ex-campeão mundial)
"Fui muito influenciado pelos jogos de Petrosian. (...) Os jogos de Kárpov são muito instrutivos." (John Federowicz, GM norte-americano, membro da equipe olímpica dos EUA nos anos 1980s)
"Nunca estudei muito teoria específica do xadrez. Aprendi sobre meio-jogo, finais, aberturas, diretamente do estudo de partidas completas. Especialmente os jogos de Capablanca e de Alekhine." (Karl Robatsch, GM austríaco, medalha de ouro de primeiro tabuleiro na Olimpíada)
"Os primeiros livros que me influenciaram foram "Meu Sistema" de Nimzowitsch e a coleção de partidas de Alekhine." (Istvam Csom, GM húngaro)
"Comecei estudando "Fundamentos do Xadrez" de Capablanca e em seguida uma coleção de suas partidas. Ele foi um jogador que me influenciou bastante. (...) Botvínnik também me influenciou, e sempre apreciei estudar suas partidas." (Gudmundur Sigurjonsson, GM islandês)
"Os primeiros livros que estudei foram "Meu Sistema" e a coleção de partidas anotadas de Alekhine. " (John Grefe, MI norte-americano, ex-campeão dos EUA)
"Certa ocasião, Polugaevsky comentou entusiasmado sobre o prazer que teve ao analisar partidas do antigo torneio de Hastings 1895. (...) Constitui um dever do jovem jogador conhecer a história do xadrez e estudar as melhores partidas do passado..." (A. Kótov, GM, ex-campeão da URSS e participante do Torneio de Candidatos)
"A melhor maneira – e talvez a única – de aprender xadrez é o estudo das partidas dos grandes mestres do passado." (Tigran Petrosian, ex-campeão mundial)
O grande campeão mundial Gari Kaspárov, que possui um conhecimento enciclopédico de xadrez, pensa exatamente do mesmo modo:
"O trabalho criativo de um grande jogador de xadrez, e especialmente de um Campeão do Mundo, nunca perde sua importância. Sempre representa uma nova página na história do xadrez, porque cada campeão mundial, quando estava em seu apogeu, realizou sua contribuição particular para a história do jogo dos nobres. (...) O quanto esses fatos novos podem acrescentar ao nosso entendimento do xadrez é algo que somente o tempo poderá mostrar."
O próprio Kaspárov também reconhece a importância que o estudo profundo das partidas de um jogador exerceu sobre a ampliaçõa de suas capacidades e estilo pessoal de xadrez:
"As partidas de Alekhine e seus comentários exerceram uma grande influência sobre mim desde os primeiros anos. Fiquei apaixonado pela rica complexidade de suas idéias sobre o tabuleiro. Os ataques de Alekhine brotavam inesperadamente, como terríveis tempestades surgindo de um céu claro. A partir daí, fui estimulado a querer jogar no mesmo estilo dinâmico do grande campeão mundial nascido na Rússia."
Vale a pena frisar: o conselho de estudar partidas de GMs não tem nada a ver com a falta de bons livros de instrução (vários jogadores citam "Meu Sistema", por exemplo). Basta ter em conta que o GM inglês John Nunn, um dos mais fortes do mundo nos anos 1980s, e hoje autor de livros de xadrez de excepcional qualidade, escreveu no ano de 2000:
"Depois que você já alcançou um certo nível, é valioso estudar coleções de partidas de jogadores famosos. Eles podem ser mais divertidos quando contém trechos biográficos, além das análises. "A vida e os jogos de Mikhail Tahl" cobre a carreira de um dos mais brilhantes jogadores da história do xadrez, falecido em 1992. Um livro mais geral de partidas clássicas é "The Mammoth book of the world’s greatest chess games" de Graham Burgess, John Emms e John Nunn."
O mesmo comentário pode ser feito a respeito do MI norte-americano Jeremy Silman, que ganha a vida escrevendo livros de xadrez para iniciantes e jogadores médios (rating até 2200), alguns em parceria com Y. Seirawan. Ele bem que poderia ter dito que os próprios livros são a melhor coisa do mundo, mas foi honesto o bastante para reconhecer, em 1993, que
"Uma das melhores maneiras de aprender xadrez é estudar as vidas e partidas dos mestres. Sua escolha dependerá do gosto pessoal e do estilo de jogo. Mas procure estudar coleções de partidas que contenham anotações que expliquem o que o mestre estava pensando."
O GM Johnatham Tisdall, atualmente radicado na Noruega, escrevendo em 1997, reforça a idéia:
"Recomendamos todas as coleções de partidas anotadas de um grande jogador. Quando é ele mesmo que anota as partidas, então a recomendação fica mais alta ainda."
Até agora, botei um monte de palavras da boca de grandes mestres e autores de livros didáticos de xadrez. E os treinadores, o que pensam eles? Selecionei o depoimento de um dos maiores treinadores do mundo, o soviético Mikhail Shereshevsky. Ele não deixa dúvidas quando escreve:
"É uma verdade trivial: quem deseja prever o futuro deve conhecer bem o passado. Se a transpusermos para a esfera do xadrez, poderemos dizer que um jovem tem chances de criar algo de novo e chegar a ser um grande enxadrista somente se conhecer bem as partidas dos mestres do passado. (...) Não se pode falar de cultura enxadrística se não se conhece as partidas de A. Rubinstein, A. Nimzowitsch, J.R. Capablanca e A. Alekhine. Este elenco poderia ser ampliado várias vezes. (...) Minha experiência de treinador mostra que depois de ter estudado as partidas de Alekhine, a pessoa sobe um degrau mais alto de desenvolvimento. (...) Como enxadrista, Alekhine é genial. Com ele, se pode aprender tudo: o desenvolvimento da iniciativa e a realização de um ataque, a elaboração do plano e a forma de jogar os finais, porém o mais importante é o modo como ele explorava sua vantagem."
Shereshevsky apresenta outra importante justificativa para estudar os clássicos: no começo do século XX, o xadrez posicional era propriedade quase que exclusiva de meia dúzia de jogadores do mais nível. Então, as partidas podiam ser tremendamente desequilibradas. O super-GM elaborava o plano e raramente recebia uma forte oposição porque seu adversário não estava compreendendo o que se passava. Desse modo, as partidas eram mais puras, com o plano claramente delineado e executado:
"Podemos observar o plano de jogo puro, original. (...) Se um dos adversários fosse um GM contemporâneo (...) então não teríamos um quadro tão nítido, porque a oposição teria sido muito maior. (...) Para aprender como se traça um plano de jogo, o estudante deve consultar especialmente a Capablanca e Alekhine."
E como estudar as partidas dos GMs? Shereshevsky recomenda:
"...terminada a abertura, tente adivinhar os movimentos sucessivos de Capablanca até culminar a partida. Procure descrever resumidamente, com suas próprias palavras, o que aconteceu na partida."
Mas será que o estudo "exagerado" (nunca há exagero no estudo!) de um determinado mestre não fará mal? Não estaríamos viciados num certo estilo ou tipo de jogo? A resposta de Shereshevsky é contundente:
"A influência de Capablanca é benigna para qualquer tipo de jogador."

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