A Idéia do Milênio - Parte I

A Idéia do Milênio - Parte I

Artigo inédito de Zalmen KORNIN
Natural de Curitiba, joga xadrez desde os 9 anos tendo participado em várias competições, inclusive Campeonatos Brasileiros (juvenil e absoluto). Atuou também como árbitro e instrutor.Compõe problemas desde 1977 e já teve seus trabalhos publicados em revistas européias (Europe Echecs e Tidskrift för Schack), brasileiras e, mais recentemente, internet. Nestes quase 30 anos de atividade, produziu ajudados, inversos, retrógrados, finais artísticos e, mais especialmente, mates diretos.
Apesar do nome de origem russa, Zalmen Kornin (na foto) destaca os símbolos sulistas: a araucária (ao fundo) e o chimarrão.

Escolher Dama, Torre, Bispo ou Cavalo: qualquer enxadrista que consiga levar um Peão ao final da sua jornada conhece o truque.
Mas, na forma arcaica, o ‘Al-Shatranj’ do Oriente Médio, o Peão se transformava, obrigatoriamente, em ‘Fers’, o vizir ou conselheiro - peça que andava só uma casa na diagonal...Vejamos um Final que pode ser anterior ao Ano 1000 da Era Cristã:

Brancas jogam e ganhamManuscrito Persa
(Murray n° 167)
Autor e data desconhecidos

Alfil em f1 e h6 (*1)
1.g4!! Af8 2.g6 Ah6 (ou 2...Ad6 3.exd6!) 3.g5 Af8 4.g7! (As Brancas conseguem capturar o Al-Fil com um Peão, e assim obter uma Fers que correrá pelas casas pretas! - o manuscrito ainda sugere: ) 4...a1=F 5.gxf8=F! ‘e as Brancas ganham’.
Surgiu uma forma arcaica do nosso tema, as PROMOÇÕES EM ECO: Naqueles tempos a COR da casa de promoção podia ser determinante para a vitória, portanto aqui temos um ECO CROMÁTICO.
Muitas caravanas passaram, o ‘Al-Shatranj’ foi levado para todos os quadrantes, adotado e cultivado em todo o mundo - na Europa a Fers adquiriu traços femininos, da ‘domina’ ou ‘regina’ (e daí veio o termo ‘COROAÇÃO’) - mas manteve os seus movimentos limitados, até que, um pouco depois de 1450, em algum lugar entre a costa mediterrânea da Espanha e o Norte da Itália, foi lançado o Xadrez moderno: Dama e Bispo se tornaram as peças ágeis que nós usamos até hoje - para o Peão, também uma ascenção espetacular, pois ele manteve o seu direito de se tornar ‘domina’, mas agora, a poderosa...
Mais um século e meio, e as novas gerações, atraídas pelo dinamismo do novo jogo, e formadas pelos exemplos dos tratados, impressos em grandes tiragens - como os do lusitano Damião (‘Damiano’) e do espanhol Ruy Lopez - já haviam esquecido o velho Xadrez ‘dos árabes’: quando Shakespeare, por volta de 1597, fez uma personagem da sua peça “King John” dizer: ‘That thou mayst be Queen, and check the world’ - é evidente que ele tinha em mente a Rainha do novo Xadrez Renascentista (não reparar que o verdadeiro Rei João da Inglaterra viveu em plena Idade Média...).
Ainda não se pensava em SUB-PROMOÇÃO - pareceria, a princípio, absurdo cogitar escolher outra peça mais fraca que a ‘regina’ - mas, com o tempo, se descobriu que isto poderia ter alguma utilidade, mesmo que fosse para não precisar de mais do que um saco de peças: O Peão se transformaria em qualquer uma que já houvesse sido capturada e, se não houvesse nenhuma à mão, o Peão esperaria, parado na oitava, até que alguma saísse do tabuleiro.
As regras evoluiam com a prática, mas ainda apresentavam muitas variações, às vezes de uma cidade para outra - o que talvez explique o famoso diálogo em “The Tempest”:
MIRANDA. Sweet lord, you play me false.
FERDINAND. No, my dearest love,
I would not for the world ‘
Mas o bom senso acabou por prevalecer, e a livre escolha da peça no momento da coroação se tornou a regra aceita e usada por toda parte: No Século XVIII, combinações que se resolviam com a transformação de um Peão em Cavalo ( “Richard III”: ‘A horse! My kingdom for a horse!’) estavam na moda: várias delas aparecem em livros e manuscritos da época.
O próximo passo foi (re)descobrir o ideal artístico: isto se deu, primeiro na França e na Grã-Bretanha, a partir dos 1830, e depois no resto da Europa e do mundo civilizado, com o surgimento das colunas em jornais e das revistas especializadas - portanto de espaço e audiência - para, digamos, uma Problematurgia ‘pura’ (arte pela arte) e ‘de autor’... Alguns dos pioneiros descobriram novas - e importantes - motivações para sub-promoções: tentar ou evitar o afogamento. Alguém teve a idéia de apresentar composições em que um Peão fosse promovido, nas variantes, a mais de uma peça, e se obtiveram, até mesmo, ‘todas as transformações’ - tradução literal do alemão ‘Allumwandlung’, termo adotado universalmente até hoje, ou abreviado para AUW, e que recorda a origem germânica e austro-húngara dos pioneiros neste campo.
(Este intermezzo shakespeariano, que evitou que nós saíssemos de uma sessão de cinema de ‘Kingdom of Heaven’ para entrar direto em outra de ‘The Phantom of the Opera’, nos leva enfim a uma certa manhã, na qual os leitores de um jornal inglês foram surpreendidos pelo seguinte:)

Mate em 4 V. Portilla
The Westminster Papers
junho de 1872
1.Dg8! a1=C 2.d8=C!! h5 3.Ce6 e mate no próximo lance - SUB-PROMOÇÕES EM ECO: jamais se vira algo assim! - Monóculos caíram, enquanto barbas eram cofiadas e cenhos se franziam diante da absoluta novidade do conceito e intrepidez na realização: Cavalo aqui, Cavalo lá! - este exemplo pioneiro deveria ser tão conhecido quanto o ‘Indiano’ (*2) ou o ‘Bristol’ (*3), se considerarmos a repercussão dos posteriores desdobramentos. E parece que foi do outro lado do Atlântico que a idéia de Portilla encontrou os primeiros seguidores: H F L Meyer a estudou, com exemplos para Bispo-Bispo e Torre-Torre; o tema foi adaptado também, de forma brilhante e fantástica, pelo grande Sam Loyd no par de problemas figurativos, que são até hoje os mais conhecidos exemplos do gênero zoomórfico: número 3 THE KILKENNY CATS (a) S. Loyd “Texas Siftings” 1888

Mate em 4 Sam Loyd
N° 4 The Kilkenny Cats
Texas Siftings, 1888
(a) 1.Cf4+ etc ; (b) 1.b8=C! O eco se produz no ensaio do felino (a) 1.c8=C? Txh1! 2.Cxe7 g1=C!!; e a sub-promoção se torna a Solução do (b) com o deslocamento da posição. Então, o tema pode aparecer também no plano VIRTUAL... e o eco - nem sempre imediato, mas precedido por uma manobra... (eco distante!?) - Os Problemas apareceram acompanhados de um conto (que talvez possa ainda ser encontrado) e de um par de desenhos (que, quase com certeza, estão perdidos) (*4).
Outro compositor norte-americano, Joseph Ney Babson (1852-1929), que poderia ser considerado um êmulo de Loyd pela imaginação exuberante e senso de espetáculo (títulos como “The Obelisc”, “The Colossus”, chamados de “extravagâncias” pelos contemporâneos) - talvez não tão versátil e popular quanto Loyd, mas cujas qualidades de persistência e tenacidade superavam às do mestre, listou, no período (a partir de 1881) em que foi o editor da revista “Brentano’s Chess Monthly”, uma série de recordes possíveis e imagináveis a serem ainda alcançados em Problemas com Peões - esta semente de ‘livro guinness enxadrístico’ poderia servir de guia para os pesquisadores, mas o próprio Babson sonhava particularmente com um destes TASKS: (NOTA: Talvez a tradução para o Português fosse ‘tarefa’, ou - ainda mais eloqüente - ‘façanha’ - o francês ‘tour de force’ também é bastante sugestivo, mas os próprios gauleses já adotaram ‘task’...).
O ALLUMWANDLUNG BICOLOR - As quatro promoções em eco nas variantes de um problema, estipulação fantástica que potencializa a idéia, levando uma hipotética realização a um nível quase impensável de complexidade.. Uma das conclusões às quais ele chegou, a princípio, sem dúvida, traçando paralelo com a história do AUW simples, e a seguir com a constatação de que a mecânica poderia ser reduzida ao tema do ‘cerco e captura’, foi de que a forma de Mate Inverso (*5) seria a mais propícia (a mais antiga das modalidades especiais do Xadrez-Arte, condicional que não altera nem as regras, nem o material, os famosos ‘Problemas de Suicídio’, conhecidos desde pelo menos o Século XIII - quando eram chamados de ‘qui perd gagne’). Três décadas se passaram antes que fosse, finalmente, publicado o primeiro exemplo acabado, com posição legal e sem peças provenientes de coroação na posição diagramada - obra que tem o seu nicho na galeria dos clássicos:

Inverso em 3 J. N. Babson
Pittsburgh Gazette Times, 1913
1.b8=C!!
a) 1...h1=D 2.a8=D! Dh7 ou Dg2 3.De4! De4#;
b) 1...h1=T 2.h8=T! Th7 3.Th7 Sc2#;
c) 1...h1=B 2.a8=B! Bg2 3.Bg2 Cc2#;
d) 1...h1=C 2.g8=C! 2.Cg3 3.Df5 Dxf5#.
As promoções brancas divididas por três Peões, e a chave que toma uma casa de fuga do Rei são pontos que ainda poderiam ser revistos, e o autor obteve uma versão melhorada doze anos depois:

Inverso em 3J. N. Babson
American Chess Bulletin, 1925
1.f8=B!!
a) 1...h1=D 2.Dg2 ou Dh6 3.Dc3! Cxc3#;
b) 1.. h1=T 2.h8=T! Th6 3.Txh6;
c) 1...h1=B 2.a8=B! Bg2 3.Bg2;
d) 1...h1=C 2.a8=C! Cg3 3.Bxg3.
Um dos Peões Brancos havia sido eliminado, mas este não seria ainda o último episódio desta história: Nesta altura, os esforços do septuagenário já impressionavam e inspiravam incentivadores e seguidores, e um - muito oportuno - ‘Babson Task Tourney” foi anunciado; e o resultado, sem dúvida, a tão desejada FORMA FINAL - Bastante significativo foi o fato de que três compositores chegaram a ela de forma independente, com os dois Problemas acima como guia, assim sendo seria justo considerar o seguinte exemplo como uma criação coletiva de Bettmann, W. Krämer e H. August (mas a ‘patente’ - o seu nome associado indelevelmente à posição - acabou sendo concedida ao primeiro pelo prosaico fato de que a sua carta foi postada primeiro...). Esta tripla coincidência consagrou as idéias e a matriz de Babson:

Inverso em 3 H. W. Bettmann
Babson-Task Tourney, 1926
1° Prêmio
1.a8=B!
a) 1...fxg1=D 2.f8=D! Dxf1 ou Dxc5 3.b5 Dxb5#;
b) 1...fxg1=T 2.f8=T! Txf1 3.Txf1 Txa6#;
c) 1...fxg1=B 2.f8=B Bxc5 3.Bxc5 Txa6#;
d) 1...fxg1=C 2.f8=C Sxh3 3.Txh3 Txa6#.
As promoções das Brancas se concentram em um único Peão e única casa; a chave é uma sub-promoção, um motivo recorrente nas versões anteriores - de fato um requintado ornamento - e neste caso o único efeito adicional é cravar um Peão preto...
A façanha já fora alcançada, mas os maiores desafios ainda estavam por vir: Uma questão se configurava de imediato: Seria possível obter o Babson-Task em Problema Direto de Mate em ‘n’?!
Muitos especialistas decretaram que NÃO - nunca, jamais, em tempo algum se obteria o Babson-Task ‘ortodoxo’, fosse em Problema de mate em ‘n’ ou (ainda mais impossível) em Estudo de Final - Mas a brasa se manteve viva, alimentada pelo oxigênio que produz o sonho, as antevisões de construções utópicas ainda a serem descobertas - mas isto já é assunto para outra ocasião... (a ser continuado...)
© 2006, Zalmen Kornin
Todos os direitos reservados. Qualquer reprodução, de todo ou parte deste artigo, deverá citar a fonte e o autor.

*1) O Alfil move-se sempre duas casas em diagonal (para frente ou para trás). Também tem a capacidade de saltar os obstáculos. (LM)
*2, *3) Os temas Indiano e Bristol são explicados no Dicionário de Temas. (LM)
*4) Os gatos que aparecem neste artigo foram retirados do livro "Chess: Serious; for fun" de I. Birbrager. Os desenhos a que Zalmen Kornin se refere foram feitos de próprio punho por Sam Loyd e são mais expressivos que estes. (LM)
*5) Nos Mates Inversos as brancas OBRIGAM as negras a darem mate no próprio rei branco enquanto as negras fazem de tudo para NÃO dar mate. O cúmulo do anti-xadrez... (LM)
Outros exemplos e comentários sobre Babson Task podem ser vistos em Problogmas de Xadrez.

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